terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Ao chegar o Natal

Ao chegar o Natal é costume falar-se muito dos pobrezinhos e assistirmos a campanhas de angariação de géneros para lhes dar. Mostra-se na televisão a Sopa dos Pobres e uma ementa generosa para a ceia natalícia. Infelizmente, passado o dia 25 de Dezembro, já apenas se ouve falar nas festas mais ou menos grandiosas que estão a ser preparadas para a passagem de ano. Estou mesmo convencido de que se gasta muito mais nos fogos de artifício e nessas festas de celebração de uma simples mudança de calendário do que tudo quanto foi angariado para dar aos mais necessitados.
Claro que essas campanhas a favor dos mais carenciados e quem as organiza, merecem em geral o nosso respeito. No entanto, é frequente haver também um sentimento de desconfiança em relação às pessoas que nelas se empenham, o que cria mal-estar em quem, muitas vezes, o faz com sacrifício da sua vida pessoal.
Ao mesmo tempo, essa suspeita cria um dilema para quem pretende ajudar. Por um lado quer genuinamente minorar o sofrimento alheio, mas por outro receia que aquilo que oferece vá parar às mãos de alguém que se interpõe entre o dador e o legítimo beneficiário da dádiva.
A solução para este dilema só poderá ser obtida através da clarificação de quais são as organizações que têm esses objectivos tão nobres e que sejam tornadas públicas não só as suas contas como a forma como foi concretizada a sua actividade.

Estas minhas divagações causadas pela fase natalícia levam-me a pensar de uma forma mais global no espírito da sociedade de que fazemos parte e na falta de idealismo que nela é cada vez mais evidente. De facto, nos dias que correm, temos a sensação de que os grandes ideais (em especial os surgidos durante o século XX) se foram mostrando como meras utopias e, por consequência irrealizáveis na prática, ou deram mesmo origem a sociedades de pesadelo. Estou a pensar em concreto em estados onde, com base em ideais aparentemente muito belos, se forjaram ferozes ditaduras, mas também em grupos formados em torno de alguns gurus que os levaram a cometer crimes e mesmo a suicídios colectivos.
Daí até às pessoas comuns se sentirem desiludidas, terá sido um passo muito pequeno.
Por outro lado, especialmente nas cidades, devido ao frenesim das nossas vidas, ao trabalho e às obrigações que nos aprisionam, ao cumprimento de prazos e de horários, e à tentativa de realização de objectivos pessoais, deixámos de ter tempo para pensar nas ideias e em valores que não sejam os imediatos. Para a maioria dos nossos concidadãos, parece reinar o egoísmo, o “chega para lá”, ou mesmo o “salve-se quem puder”. A palavra “stress” parece ter-se instalado no nosso léxico de forma irreversível.
Mas será que no fundo de cada um de nós terão de facto desaparecido em definitivo os desejos de algum idealismo? Penso, ou desejo pensar, que não.
É certo que a nossa sociedade tem problemas importantes para resolver: na justiça, na educação, na saúde, no equilíbrio das contas públicas, e em outros aspectos que os noticiários não deixam esquecer. Mas estou certo de que acabará por chegar o momento em que as pessoas deixarão de pensar apenas nas coisas mais “terra a terra” e começarão de novo a tentar encontrar ideais colectivos.
Pergunto a mim mesmo se o futuro nos trará novos ideais, ou se serão alguns dos antigos a readquirir o seu justo valor. Estou a pensar concretamente nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Quanto a estes, seria bom recordar que são extremamente belos. No entanto, talvez seja necessário que adquiram um sentido mais profundo do que actualmente lhes atribuímos. Por exemplo, seria muito positivo que ao pensarmos na ideia de “liberdade”, não nos limitássemos apenas a querer as nossas liberdades individuais, o nosso direito de opinião ou de iniciativa, mas também a que os seres humanos de todo o mundo tivessem essas mesmas liberdades. Já que tanto se fala em que vivemos na era da “globalização”, penso que seria excelente que a liberdade responsável fosse, também ela, “global”.
O mesmo se poderia dizer da ideia de “igualdade”. Se todos a conseguíssemos interiorizar, ou seja, se sentíssemos realmente dentro de nós que todos os seres humanos devem ter os mesmos direitos e deveres, quaisquer discriminações, sejam elas as baseadas no sexo, na raça, no credo religioso, nas ideias políticas ou no volume das contas bancárias, desapareceriam para sempre.
Mais distante ainda da generalidade das pessoas está uma ideia que, em conjunto com as duas anteriores, formou uma trilogia que se espalhou a partir da Revolução Francesa. Refiro-me à “fraternidade”. Como era bom que todos os seres humanos sentissem que fazemos parte de um mesmo mundo e que na realidade somos membros de uma só família! Podemos desligar o televisor quando aí nos são mostradas situações terríveis que infelizmente continuam a acontecer. Podemos fingir que não sabemos de nada, mas na verdade não deveríamos nunca esquecer que as vítimas de guerras estúpidas (e todas o são), do terrorismo e das calamidades naturais, são nossos irmãos. As crianças que, em vários pontos do planeta, morrem de fome são tão nossos irmãos como os amigos com quem vamos almoçar.

Há um outro ideal que não nasceu com a Revolução Francesa, mas antes devido à constatação de uma realidade terrível: a protecção do meio ambiente. É cada vez mais importante que todos tenhamos consciência das limitações dos recursos naturais e da necessidade de proteger da extinção todas as espécies que connosco partilham este pequeno planeta. Aqui já não estamos apenas perante um ideal mais ou menos distante, mas antes na presença de uma obrigação colectiva. Temos de interiorizar que é preciso defender o nosso mundo não só para nós como para as gerações que nos vão suceder. E também aí, todos podemos fazer alguma coisa, desde o apagar a lâmpada desnecessária até ao levar para a reciclagem o jornal que já lemos.
Antes de se criarem novos ideais, talvez seja necessário tomarmos plena consciência das realidades que nos envolvem e de que fazemos parte. O egoísmo tem de dar lugar à tolerância. Os nossos interesses individuais devem submeter-se aos da sociedade no seu conjunto.
Da mesma forma, as conveniências das nações e das multinacionais, podem ser muito respeitáveis, mas não se podem sobrepor aos interesses de toda a humanidade. Por isso há que substituir o som das bombas pelo das palavras, a guerra pelo diálogo, a injustiça e a ambição pela fraternidade.

Se nós, as pessoas comuns, criarmos um espírito colectivo suficientemente forte, os governantes e os grandes empresários, por mais poderosos que sejam, serão obrigados a mudar de rumo.
Podemos continuar a trabalhar arduamente e a divertir-nos quando tempos oportunidade, mas é imperioso que comecemos a guardar um pouco do nosso tempo e das nossas energias para a busca dos ideais, pois estes são essenciais para que a humanidade progrida e alcance a paz e a justiça de que tanto carece, num planeta que, tanto quanto sabemos até ao presente, é o único com condições para que nele possamos viver.

Autor: Carl Sagan

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