terça-feira, 22 de abril de 2008

Memórias de uma rua

Desde pequeno que eu adorava lá passar uns bocados. Por vezes, eram mesmo várias horas. Até porque, para além da agradável companhia de pessoas da família, tinha oportunidade de ler (de borla!) as revistas de banda desenhada acabadas de sair… Além disso, dali podia sentir o burburinho da cidade, ver as pessoas a passar. Havia sempre tanta gente! Da porta da minúscula loja eu avistava facilmente a Praça da Liberdade e até a Torre dos Clérigos. E quando lá estava com o meu avô, era garantido que, mal chegasse o meu tio para o substituir, se seguia um petisco na rua sombria que ladeia a estação de S. Bento.
Já me não lembro quando me terão ensinado o nome da rua, mas não tardei a sentir que havia ali algo de estranho. De facto havia muita gente que se enganava e lhe chamava 31 de Janeiro. Cá por mim, tanto me fazia, afinal o nome Santo António dizia-me tanto como aquela data. Acabaram por me dizer que, todos os anos nesse mesmo dia, a minha avó queria a loja fechada mais cedo por causa da tinta azul. Tive de insistir para que me explicassem o que era isso da tinta azul. Lá fiquei a saber, no maior dos segredos, que era a polícia que atirava jactos de água com tinta azul às pessoas que eram do “contra”. E a água, para mais com tinta, estragava as revistas e os jornais… Além disso, as pessoas, ao fugirem apavoradas, podiam esconder-se na loja e, se os polícias lá entrassem, o mais certo era partirem tudo e baterem em toda a gente. Por isso estava decretado: «31 de Janeiro, dia de fechar cedo».
Também me lembro do meu tio, impressionado, descrever ao meu pai a violência com que a polícia batia nas pessoas que lá na rua gritavam «Viva a República». Fiquei calado, mas confuso. Então Portugal não era uma República? Até tinha um Presidente. É verdade que, quando davam os discursos dele na televisão, ninguém prestava a menor atenção… Havia qualquer coisa que não batia certo, mas eu, com os meus 10 anos, tinha mais com que me entreter.
Um dia, já eu era mais crescido, ia a descer a rua, quando notei alguma agitação. Motas da polícia abriam caminho e, logo atrás, ia um carro muito grande. Lá dentro, o tal Presidente. Nunca me esquecerei de que muitos transeuntes, só de o verem, começaram a bater palmas. Eu, que nada percebia de política, achei que não tinha qualquer lógica aplaudir só porque um sujeito ia a passar… Quando contei isto à minha avó, ela disse-me que era melhor a gente bater palmas, porque nunca se sabia quem nos estava a ver. Isto ainda me impressionou mais…

Viva o 25 de Abril

Autor: Carl Sagan

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