terça-feira, 9 de março de 2010

John Steinbeck, a luz incorruptível

John Steinbeck nasce no ano de 1902, em Salinas (Califórnia). As origens da sua família perdem-se nas vagas de emigrantes europeus, corre nas suas veias sangue alemão e irlandês. A sua infância e adolescência são passadas em Salinas, localidade que, então, não devia ter mais que dois mil e quinhentos habitantes. O vale de Salinas não era mais que uma sucessão de pântanos cheios de juncos que secavam, no Verão, dando origens a depósitos brancos de alcali, tendo justificado, provavelmente, o nome de Salinas (palavra derivada de sal). Salinas constituía um enclave social e ecológico, localidade relativamente isolada à margem das grandes rodovias, mas passou a oferecer, com o aterro dos pântanos, novas oportunidades de desenvolvimento. A localidade herdou, apesar do desenvolvimento, a escuridão dos pântanos, diz o escritor, «um vento frio e uma monotonia desoladora» apenas quebrada pelas rivalidades entre famílias e os conflitos pela apropriação e uso da terra. A estrutura económica e social era dominada pelos proprietários de terras e os criadores de gado, que também se tinham tornado cultivadores de bens hortícolas e de outros produtos perecíveis. A luta pelo comércio e o escoamento de produtos anima, em parte, uma das obras-primas do escritor – A Leste do Paraíso (1952).
As memórias de infância e adolescência marcam John Steinbeck e tornam-no sensível, creio, para as desigualdades sociais e a importância dos condicionalismos económicos que viciam o carácter humano. Salinas, saliente-se, recebeu de armas em punho a chegada de novos emigrantes e a organização dos primeiros sindicatos. A localidade saberia, contudo, rasgar horizontes de futuro integrando-se, com os seus produtos e serviços, numa economia de dinâmica regional. «O aspecto do vale alterou-se por completo», confessa o escritor, «devem viver cerca de catorze mil» no sítio onde em tempos se erguia uma loja «no meio de um pântano», conclui.
Durante toda a sua vida, julgo, o escritor ficaria prisioneiro desta paisagem seca de pântanos vencidos, afirmando por sobre a sua desolação o valor inalienável da liberdade: liberdade tantas vezes contrariada nos exemplos que assistiu desde muito jovem… O sentido da propriedade violenta o valor da liberdade, eis uma das lições a extrair do seu primeiro sucesso literário, Tortilla Flat. Seguindo o ideal arturiano da justiça e da fraternidade entre todos os homens e povos, os novos cavaleiros da Távola Redonda, no seu conto Tortilla Flat, descendem há séculos de emigrantes irredutíveis ao carácter da América: são paisanos sem emprego regular e sem compromissos familiares, vagueiam pelas colinas e ruas pobres de Monterey (perto de Salinas). Mas estão à beira de descobrirem o sentido da liberdade! A dureza da vida tornou-os resilientes aos discursos sobre a moralidade burguesa e aos grandes valores apregoados pela classe política, mas reinventam a inter-ajuda solidária vivendo como irmãos, partilham o mesmo tecto e prestam assistência até a um dos assaltados, que se tornaria mais um companheiro das desventuras do grupo liderado por Danny. Danny, personagem central de Tortilla Flat, simboliza a tensão entre uma liberdade hedonista que se confunde com a indiferença face ao sofrimento alheio e a fraternidade que exige compromisso e aliança entre irmãos.
As expressões aqui empregues apelam a valores maçónicos, mas não são introduzidas de forma forçada. Em Salinas existia, na época, uma enorme densidade e diversidade de Lojas Maçónicas. Salinas e a maçonaria influenciaram o autor, a procura incessante de uma utopia universal. Uma utopia realista porque tangível, erguida com o valor da consciência e da condição humanas. «Nós éramos uma família maçónica», escreve Steinbeck, «meu pai era maçom e a minha mãe pertencia à Estrela do Oriente».
Por que me demorei a falar de Salinas? Porque tudo pode ser apreendido na sua matriz evolucionária, a tensão entre os valores e as práticas, e o testemunho de uma liberdade que só pode ser conquistada pelo compromisso e a abdicação na entrega ao outro. Releio os seus contos, para além das grandes obras mais conhecidas. Steinbeck é um escritor atento aos pequenos gestos, a tudo que exorta ou ameaça a dignidade humana. No seu conto porventura mais polémico (rejeitado pela crítica), The Moon is Down (traduzido como Noite sem Luar), a liberdade tem o elevado preço da colaboração entre uma população ocupada e o exército ocupante. O eleito local, de nome Orden, simboliza a resistência e a colaboração possíveis, mas também a força de uma união contra a tirania imposta: «Sou o símbolo duma ideia concebida por homens livres. É impossível prendê-la», responde Orden, impedido de sair do edifício onde ficou detido. Pouco depois será fuzilado. Como no conto A Pérola, onde a violência de classe, no caso, transtorna a família de Kino, vários contos de Steinbeck parecem transmitir uma acepção antropologicamente negativa sobre o género humano e as relações sociais, contaminadas por ânsias de poder. No entanto, há sempre um gesto fraterno que tudo redime, uma escassa margem de liberdade que pode fazer toda a diferença!

Por que escolhi John Steinbeck como meu nome simbólico? A vida do escritor é muito diferente da minha, e se me detive na sua infância e adolescência foi por considerar esses períodos marcantes da sua personalidade. A vida do escritor (como se retomasse agora o início desta prancha), pode ser resumida de forma muito mais sucinta: John Steinbeck nasceu em Salinas, Califórnia, filho de um Tesoureiro e de uma professora local, estudou em Salinas e na Universidade de Stanford, sem completar estudos superiores, tendo interrompido os estudos para regressar para a refinaria onde, então, trabalhava. Mudou-se para Nova Iorque (1925) e trabalhou num jornal local, voltou para Salinas no ano seguinte. Casou pela primeira vez em 1930 com uma filiada no Partido Comunista americano (o que lhe valeu uma investigação das autoridades sobre as suas simpatias políticas). Sua mãe morre em 1934 e seu pai em 1935, ano em que publica Tortilla Flat, seu primeiro êxito literário. Com Ratos e Homens (1936), a sua obra torna-se mais densa de preocupações éticas desenvolvendo narrativas sobre o preconceito e as desigualdades sociais. Em 1937 publica As Vinhas da Ira, livro que chegou a ser proibido em várias cidades da Califórnia. Recebeu o Prémio Nobel em 1962. Morre em 1968, ano em que publica A América e os Americanos, reabilitando a sua obra de não-ficção, artigos e memórias em que me baseio, em parte, para trabalhar sobre esta prancha.

Por que o meu nome simbólico é John Steinbeck? Porque partilho com o escritor três condições essenciais: a concepção sobre o género humano, o sentido da liberdade e a sensibilidade sócio-ecológica. Reparo que as personagens criadas por Steinbeck, mesmo enfrentando situações difíceis, não desesperam. Mantêm a lucidez dos seus actos, e a consciência da sua responsabilidade. Por muito opressores que sejam um regime político ou uma condição humana prevalece uma pequena, mas não desprezível, margem de autonomia individual que a cada um responsabiliza. Os nossos actos não podem ser desculpados pelas circunstâncias. Em The Moon is Down, Orden contacta com os resistentes através de mensagens enviadas por Anita, a cozinheira. Assim como nenhum cargo é mais importante que outro, nenhum acto é alienado da responsabilidade do seu executante. Neste conto, o exército ocupante acabará por se sentir sitiado pela população. O apelo da liberdade não pode ser suprimido. Não interessa o que fazem a um homem, interessa muito mais aquilo que ele faz daquilo que fizeram dele. A concepção sobre o género humano de Steinbeck reivindica, assim, o elemento que nos diferencia de um percurso histórico aleatório: a consciência humana, o apelo incessante da liberdade!
O sentido da liberdade só se cumpre na fraternidade, exigindo compromissos, dedicação e acto – se partilho também com o escritor a paixão pela palavra é porque também a palavra é acto, capacidade de testemunho e de apropriação simbólica da realidade, tornando-nos responsáveis. Mas é bom que a palavra seja mais urgente que o silêncio, e que os actos estejam comprometidos com a palavra. No Princípio era o Verbo… o fim depende daquilo que fizermos, pois a História é feita pelos homens, mesmo que os homens não saibam a História que fazem. Mas a raiz da liberdade é a consciência humana.
A sensibilidade sócio-ecológica também me aproxima do escritor. As Vinhas da Ira, e vários artigos escritos um pouco antes sobre as condições de trabalho e camponeses expropriados pelas hipotecas ou a erosão dos solos testemunham uma crise social e ecológica, que assolou a América logo a seguir à crise financeira e ao colapso dos mercados especulativos em finais dos anos 20 do século passado. Steinbeck sabia que uma estratificação ecológica é correspondida por uma estratificação social, pelas condições de vida e posições no território (Steinbeck concebe o território como um espaço topológico de relações de poder). Nos tempos presentes assistimos também, agora numa escala global, a uma sucessão de crises financeiras como danos colaterais de mercados especulativos e da corrupção política, da falta de regulação eficaz. A crise da globalização é uma crise da regulação.
Às crises dos mercados sobrepõem-se crises ecológicas, pelo percurso incerto das alterações climáticas. Steinbeck tinha esta sensibilidade, à dimensão da época que viveu, o sentido da terra e o prazer da natureza. Não de uma natureza entendida como um sistema mecânico e espontâneo separado das sociedades humanas (Steinbeck estranha uma natureza protegida pelo Estado e, na verdade, como relata em Viagens com o Charlie, só muito tarde visitou o Parque Natural de Yellowstone). A sensibilidade do escritor leva-o a querer compreender as mútuas dependências entre os sistemas sociais e os sistemas naturais: Steinbeck é um escritor que descreve as formas de uso e ocupação do solo, as rivalidades e os condicionalismos económicos e ambientais.

Por tudo o que disse, e também pelo fascínio da palavra (não de uma palavra que seja apenas mais ruído, e menos necessária que a reserva de silêncio que a anuncia, mas denúncia e factor de consciência humana), julgo justificar o meu nome simbólico pretendendo continuar a pertencer a esta irmandade fraterna e contribuir para a afirmação dos valores universais da maçonaria. Liberdade, Igualdade, Fraternidade representam o percurso ético, e épico, da humanidade: a tirania e todas as formas de violência e obscurantismo apenas podem medrar onde prevalecem a ignorância e a irresponsabilidade, o egoísmo dos mercados.
Está em jogo a sustentabilidade social e ambiental do planeta, e caminhamos na incerteza dos futuros. Por fim, se agirmos com a consciência dos nossos actos e o sentido da responsabilidade colectiva, convocando aqui expressões usadas por John Steinbeck (The Moon is Down), «talvez nos mostrem expressões carinhosas. Veremos amigos à nossa volta. Não nos afastaremos de ninguém cheios de pavor…».

No Princípio era o Verbo. No fim não o sabemos, mas o futuro começa em cada instante! Sejamos, pois, Irmãos!

Autor: John Steinbeck

2 comentários:

Paulo Salcedas disse...

John Steinbeck pra mim é um dos grandes escritores do século XX, com uma obra admirável.

Gabriela Fernandes disse...

Para mim o melhor do Steinbeck é mesmo o "A Leste do Paraíso" (aqui para quem quiser ler: http://portugues.free-ebooks.net/ebook/A-Leste-do-Paraiso), e a sua versão de cinema não ficou atrás - tudo o que tenha o James Dean vale a pena! :D