terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Carlos

Para o bem e para o mal nasci Angolano, Angola foi e será sempre a terra do meu coração.
Como alguns saberão vivi uma parte dolorosa da história daquela terra, o que não me faz esquecer as muitas e gratas recordações que dela também tenho. Lembro-me das farras aos sábados e das madrugadas de domingo, que se lhe seguiam, passadas na praia cantando. Eram das poucas ocasiões que tínhamos para estar em grupos sem que a policia nos considerá-se incómodos para o regime vigente.
Uma das músicas obrigatórias era Muxima cuja tradução para português significa coração pois a considerávamos um hino a Angola, tocada e cantada na praia olhando o nascer do Sol sobre a baía de Luanda, respirando tranquilidade, ouvindo aquela guitarra e a voz de soul de Liceu, um dos músicos de serviço e autor da mesma.
Numa farra perguntei a Liceu porque todas as suas canções eram em kinbundo, dialecto que eu não entendia e se tal não constituía um perigo para um território geograficamente dividido por rios, com vários grupos étnicos e dialectos
Liceu sorriu, e disse-me, é o dialecto que domino e é o que o povo daqui entende.
-- De chofre pergunta-me:
-- Que achas da música?
-- Respondo:
-- Sente-se, vive-se, e ver as mães a dançar como se estivessem a embalar crianças, só tu arranjavas esta coreografia, e só sendo africano se pode ter este sentimento.
-- Pois, fico satisfeito por brancos gostarem da minha música, é de propósito.
-- Porque?
-- Temos de lutar por uma sociedade multicultural, somos angolanos.
-- Insisto, porque não em português?
-- Não te preocupes. Se o português não for a nossa língua oficial nunca seremos um País.
-- Tens razão, vou dançar este merengue.
Curiosamente este homem nascido na Republica Democrática do Congo (um de 24 irmãos) tinha sido registado Angolano, e eu nascido numa cubata no Bembe, norte de Angola, tenho no bilhete de identidade nascido no Fundão, pois meu pai recusava que os filhos fossem brancos de segunda.
Conhecido por Liceu Vieira Dias, ou simplesmente Liceu, alcunha dada por ter sido um dos primeiros negros angolanos a terminar o secundário no Liceu Salvador Correia, foi preso no final da década de cinquenta, e desterrado mais de uma década no campo de concentração do Tarrafal em Cabo-Verde, pela sua luta pela Liberdade e Independência de Angola, à qual sempre se manteve fiel.
A sua grande sensibilidade musical e cultural, assumindo a oralidade tradicional africana, fá-lo iniciar um trabalho de resgate cultural, procurando relançar músicas tradicionais e a elas dar arranjos modernos sem perder as suas essências originais.
Reconhecido como o pai da música angolana criou o género rítmico-canção denominado por semba. Deve-se-lhe ainda a introdução do reco-reco e das congas na música e ritmos de Angola sendo na viola acústica que mais se evidenciou.
Iniciou a carreira artística em 1947, fundando a banda musical Ngola Ritmos, o seu veículo de intervenção.
Liceu Vieira Dias um dos fundadores do MPLA, manteve-se coerente na defesa dos seus princípios e valores, como a liberdade, o multiculturalismo, a não violência e o diálogo. Com efeito os caminhos seguidos de confronto e de partido único baseados em concepções importadas sempre contaram com a sua oposição mantendo-se fiel a um modelo pluricultural e pluriracial para Angola baseado numa evolução com Liberdade. Assim em 1975 no congresso do MPLA em Lusaka, procurando evitar a guerra civil iminente, torna-se dissidente formando com outros moderados o movimento denominado Revolta Activa.
Este homem simples, que muito me ensinou da cultura angolana, e com quem aprendi que a defesa dos valores e princípios fundamentais em que acreditamos não têm preço tinha como seu primeiro nome Carlos.
É em sua homenagem que escolhi o meu nome simbólico.

Autor: Carlos

SABER MAIS:
Liceu Vieira Dias nasceu a 1 de Maio de 1918, na República Democrática do Congo. É unanimamente considerado o “pai da música popular angolana”. Tendo as violas acústicas como base, ele introduziu a dikanza (reco reco) e as ng’omas (tambores de conga) nas suas canções. A sua carreira musical começou, em 1947, quando, com Domingos Van-Dúnem, Manuel dos Passos, Mário da Silva Araújo, e Nuno Ndongo fundou o Ngola Ritmos, um grupo “histórico” da música popular angolana.
Três anos depois, a banda é reforçada com Amadeu Amorim, Belita Palma, Euclides Fontes Pereira, José Cordeiro e Lourdes Van-Dúnem. As músicas eram cantadas em kimbundu acompanhadas de violão e percussão. O seu som tornou-se muito popular na década de 50, sobretudo nas áreas urbanas, onde a audiência era favorável à sua mensagem politizada e nacionalista. O filho Carlitos Vieira Dias é o sucessor do enorme legado histórico e musical de Liceu Vieira Dias.

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